Quitada a dívida contraída para a construção de Itaipu, o Brasil já pode rever a forma como comercializa a energia da hidrelétrica, avaliam especialistas do setor.

A medida não demanda negociação com o Paraguai e não fere os princípios do Tratado de Itaipu. Depende apenas de decisão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e alteração legal no Congresso Nacional, afirmam.

Neste momento, Brasil e Paraguai estão prestes a iniciar a renegociação do Anexo C, parte do tratado que define questões financeiras, mas isso também não faz diferença, argumentam. O Tratado de Itaipu determina que 100% da energia precisa ser contratada, com eventuais sobras de cada lado sendo cedidas para o parceiro, mediante um pagamento.

Não há no documento imposições sobre como cada país vai tratar a sua parte da cota, reforçam os especialistas.

Do lado brasileiro, uma lei de 1973 obriga que a tarifa da hidrelétrica seja embutida na conta de luz de 31 distribuidoras de dez estados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, seja qual for o preço. Essa compra compulsória foi uma das estratégias em favor do financiamento e reforçou as garantias aos credores de que haveria fonte certa de recursos para pagar a dívida da obra.

O empréstimo foi feito integralmente pelo Brasil, bem como a apresentação das garantias e, segundo estudo do Instituto Acende Brasil, detalhado neste domingo pela Folha, a quitação também. Os brasileiros consumiram a maior parte da energia e pagaram integralmente, via conta de luz, os US$ 63 bilhões (R$ 311,7 bilhões) da dívida, até a ultima parcela, em fevereiro deste ano.

O instituto defende o fim da obrigatoriedade de compra da energia pelas distribuidoras e que ela passe a ser comercializada em leilões pela ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional), estatal que assumiu o lado brasileiro de Itaipu após a privatização da Eletrobras.

“A ENBPar pode fazer o leilão para todos, distribuidores e consumidores livres”, diz Claudio Sales, presidente do Acende Brasil

Pela proposta, eventuais valores gerados pela diferença entre a tarifa da usina e o preço de venda no mercado seriam utilizados para reduzir a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), onde se concentram os gastos do Brasil com os crescentes subsídios ao setor de energia, deixando mais barata a conta de luz do país.

A avaliação é que a venda no mercado também exigiria que Itaipu se tornasse mais competitiva e reduzisse a tarifa, algo que hoje não parece estar no foco dos governos parceiros, segundo críticos.

A dívida pela obra representava 60% das despesas, então, a expectativa era de que a sua queda e a quitação levariam a reduções proporcionais na tarifa, o que não ocorreu. Os recursos estão sendo canalizados para obras e projetos socioambientais, que os especialistas consideram uma espécie de “orçamento paralelo” para os governos dos dois lados da fronteira.

“A inclusão de inúmeras atividades que não têm relação com a exploração hidrelétrica de Itaipu representam uma distorção no espírito do tratado, e o efeito prático disso é encarecer de maneira irracional o custo da energia de Itaipu”, diz Sales. “Não há nada mais socialmente correto que garantir energia barata.”

A dívida começou a cair em 2007. De 2009 a 2021, anualmente, o seu custo se manteve na casa de US$ 2 bilhões (R$ 9,9 bilhões) e a tarifa ficou congelada. Em 2022, o custo caiu para US$ 1,4 bilhão (R$ 6,9 bilhões). Neste ano, cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão) quitaram o pagamento. A redução, porém, não foi integralmente repassada à tarifa.

Em paralelo, o gasto com as obras e os projetos socioambientais foram crescendo.

Levantamento realizado pela consultoria PSR, uma das mais conceituadas do setor, identificou que esses projetos custavam US$ 88,5 milhões (R$ 437,8 milhões) em 2013. No ano passado, chegaram a US$ 316 milhões (R$ 1,56 bilhão).

Estimativas do MME (Ministério de Minas e Energia), em 2022, apontavam que a tarifa, sem a dívida, ficaria na casa de US$ 10,77 (R$ 53,28) pelo KW (kilowatt). Neste ano, está em US$ 16,71 (R$ 82,67).

Procurado pela Folha para falar sobre a tarifa, o Itamaraty afirmou que o valor “é o resultado de intensas negociações bilaterais e representa o equilíbrio possível entre os interesses de Brasil e Paraguai”.

A assessoria de Itaipu, por sua vez disse que a tarifa de 2023 é a menor em 20 anos, e que as iniciativas no campo da responsabilidade social e ambiental foram pactuadas pelas chancelarias dos dois países como “componente permanente na atividade de geração de energia”.

De fato, esses investimentos só são possíveis por uma alteração na missão original de Itaipu, feita em 2005. O governo Lula sugeriu, e o Paraguai aceitou, que Itaipu passasse a atuar em favor do desenvolvimento regional, aplicando-se a regra da paridade. Cada dólar gasto com esse fim num país, o outro também terá direito a gastar.

A medida foi oficializada por meio de um instrumento diplomático chamado Nota Reversal, e o novo custo passou a ser contabilizado na despesa de exploração, que originalmente foi criada para gastos de operação e manutenção da usina.

Todo governo da vez no Brasil alega que o Paraguai não quer baixar a tarifa, mas nenhuma gestão explicou quais são os critérios e os limites desse tipo de investimento, uma vez que a tarifa da usina é o custo da operação. A história mostra que cabe de tudo nesse tipo de investimento.

Itaipu no governo Michel Temer liberou a construção de duas pontes entre os dois países parceiros, uma em Mato Grosso do Sul. A gestão de Jair Bolsonaro apoiou 24 projetos, entre eles a estrada Boiadeira, trecho da BR-487 no Paraná.

Com o caixa abastecido com um valor histórico, dizem pessoas próximas a Itaipu, Lula 3 ampliou de 55 para 434 o número de municípios com direito a receber projetos socioambientais e de infraestrutura. A lista inclui todos os 399 do Paraná e 35 de Mato Grosso do Sul. Foi anunciado R$ 1 bilhão por meio de um convênio com a Caixa.

Outros R$ 600 milhões vão para conclusão da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), em Foz do Iguaçu (PR).

“Os recursos pagos por milhões de consumidores tinham de ser distribuídos para todo o país, mas em uma ação ofensiva ao pacto federativo estão concentrados na mão de um estado só, onde são utilizados para fins políticos”, afirma José Luiz Alquéres, que foi conselheiro de Itaipu e presidente da Eletrobras.

Alquéres lembra que cada dólar gasto no Brasil equivale a outro dólar na conta do Paraguai –tudo pago pelos brasileiros, como mostrou levantamento do Acende Brasil.

“Lá também se coloca dinheiro em todo tipo de coisa, como aulas de guarani e redes de postos de gasolina. É um total desvirtuamento, que não está sob controle de nenhuma fiscalização seja qual for o lado da fronteira.”

Na tentativa de monitorar esses custos sem relação com energia elétrica, órgãos de controle externo nos dois países tentam criar uma Comissão Binacional de Contas. Em 16 de outubro, o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas de União), Lucas Furtado, entrou com uma representação solicitando ao órgão que antecipe uma ação.

“Defendo a fiscalização e falo em desvio de finalidade porque a usina foi feita para produzir energia, não criar emas”, afirmou à Folha, numa referência ao fato de Itaipu estar financiando o novo viveiro de emas no Palácio da Alvorada.

O fim dessas despesas e da compra compulsória de energia, bem como a oferta em leilões já contam com apoio de outras entidades.

“O Brasil precisa de energia competitiva para o seu desenvolvimento, e todos concordam que ela está chegando cara ao consumidor final e no preço dos produtos. Itaipu é uma oportunidade de começar a reverter isso”, diz Paulo Pedrosa, ex-conselheiro de Itaipu e presidente da Abrace Energia, entidade que reúne grandes consumidores empresariais de energia.

O presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata, que também atuou em Itaipu, apoia as mudanças e afirma que elas devem ser debatidas com a sociedade.

“O consumidor deve ter um papel predominante nessa discussão por ser o pagador do serviço, mesmo aqueles que estão nas regiões que não deram suporte ao pagamento da construção da binacional devem participar da solução”, diz Barata.

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO