O nome escolhido no próximo domingo (30) para comandar o Paraguai terá uma tarefa assim que se sentar na cadeira presidencial: renegociar as regras que definem a tarifa de energia produzida pela hidrelétrica de Itaipu, na fronteira com o Brasil.

O tratado firmado entre os dois países faz 50 anos nesta quarta (26); por isso, uma parte dele, o chamado anexo C, terá que ser revisto neste ano. Segundo o tratado, tudo que é gerado pela usina é dividido meio a meio, mas o Paraguai não consome toda a sua parte.

O que está em jogo é, portanto, o que será feito com esse excedente, que, de acordo com o documento atual, é vendido ao Brasil sem gerar lucros. Serão discutidos, principalmente, os componentes que definem o seu preço, repassado aos brasileiros das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Uma parte importante desse preço correspondia à dívida contraída para a construção da hidrelétrica, que correspondia a 64% dos gastos da usina em 2021. Em fevereiro, porém, depois de cinco décadas, o compromisso foi quitado e os custos caíram, mais um motivo para a revisão do acordo.

Diante de uma corrida presidencial ainda muito incerta no Paraguai, a quatro dias da eleição de turno único, a escolha de um ou de outro candidato pode mudar o destino das negociações, previstas para começarem em agosto, mês da posse do novo mandatário.

Enquanto Santiago Peña, do partido conservador Colorado (no poder há praticamente 70 anos) dá poucos detalhes de suas intenções com a hidrelétrica, o postulante pela coalizão de oposição, o liberal Efraín Alegre, já disse à Folha que “o modelo atual não convém ao Paraguai”.

Ambos aparecem tecnicamente empatados na pesquisa divulgada nesta terça (25) pela AtlasIntel –considerada a mais confiável num país com pouca independência dos institutos–, com 33% e 34% respectivamente. Um terceiro candidato ganhou força na reta final, o extremista Paraguayo Cubas, que tem 23% e também se posiciona no sentido da “soberania paraguaia”.

Todos, porém, veem vantagem em negociar com Lula (PT) e têm sido cautelosos ao tratar do tema, que desperta paixões e nacionalismo exacerbado na população paraguaia. Há uma forte narrativa contra o que eles chamam de subimperialismo brasileiro.

O assunto Itaipu quase derrubou o presidente colorado Mario Abdo Benítez em 2019, após um acordo secreto firmado com o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem era próximo. O vazamento do conteúdo, que traria prejuízos de mais de US$ 200 milhões a Assunção, foi o estopim para uma onda de protestos que o pressionaram a cancelá-lo.

Itaipu fornece cerca de 86% da eletricidade utilizada pelo Paraguai, enquanto no Brasil essa porcentagem é de 8%, segundo a hidrelétrica. Foi a responsável pelo vertiginoso crescimento do país entre 1974 e 1982, quando cerca de 30 mil operários trabalharam nas obras, e chegou a reverter a emigração na época.

“Temos diferenças nas políticas de desenvolvimento. Para o Brasil, o mercado quer que eu tenha a energia elétrica mais barata possível. Para o Paraguai, o importante é ter um excedente para investir no desenvolvimento”, disse o diretor brasileiro de Itaipu, o deputado federal Enio Verri (PT), em cerimônia nesta quarta em Foz do Iguaçu (PR).

Segundo Tomas Espósito, especialista no tema pela Universidade Federal da Grande Dourados (MS), entre os interesses paraguaios estão também mudar a terminologia de “cessão” da energia excedente para “venda” e comercializá-la diretamente ao mercado brasileiro, sem passar pela Eletrobras, ou a outros países.

Um quarto interesse seria conseguir mais financiamentos para obras e projetos. “Itaipu é a principal fonte de receita e de dólares paraguaia. Você vai até Assunção e hospital, creche, é tudo construído com dinheiro da usina”, diz o pesquisador.

Esses recursos, dos chamados “programas de responsabilidade socioambiental” de Itaipu, são a mina dos olhos de políticos dos dois lados da fronteira e vêm sendo ampliados na última década. Dobraram de US$ 220 milhões para cada lado, no ano passado, para US$ 400 milhões neste ano -o que, na prática, impede uma queda maior na tarifa de energia aos consumidores após o fim da dívida.

Isso também pode estar em jogo com as eleições paraguaias. “Somos muito críticos a essa política. Acreditamos que Itaipu é uma empresa para gerar energia, e não deve ser outra coisa”, afirmou o candidato Efraín Alegre em entrevista à Folha, defendendo a transferência dos recursos ao Estado para evitar corrupção.

Ele é o único que tem propostas mais demarcadas sobre a política energética. É o item 1 de seu programa de governo, que cita “seis exigências” na negociação: preço de mercado, cogestão e paridade de benefícios, transparência, conclusão das obras, discussão sobre o impacto causado pela “dívida espúria” e aos povos indígenas.

Sua ideia é atrair investimentos e usar essa energia para gerar empregos e desenvolver o país, para que em alguns anos não sobrem excedentes a serem negociados.
Santiago Peña, por sua vez, tem se mantido mais longe do tema. Não citou as negociações, por exemplo, ao discursar aos funcionários da Itaipu Binacional no início do mês, dizendo apenas que “os que chegam aos cargos públicos chegam graças ao partido Colorado”.

Foi a legenda que assinou o tratado com o Brasil 50 anos atrás, durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), e também que tratou do acordo com Bolsonaro. O jornal pediu entrevista ao candidato e enviou perguntas, mas sua equipe disse que a agenda estava muito apertado nos últimos dias de campanha.

“Não dá para falar que o colorado é mais favorável ao Brasil, eles também conseguiram benefícios ao Paraguai em outras negociações, mas a oposição é mais enfática nessa questão”, diz Victorio Oxilia, professor da Universidade Nacional de Assunção.

O terceiro colocado, Paraguayo Cubas, vai no mesmo sentido de Alegre. Seu postulante a vice, o engenheiro eletricista Stilber Valdés, respondeu à Folha que “o Paraguai deve ter soberania absoluta sobre os seus 50%”, mas vai além ao defender que o país deve reivindicar a venda direta do seu excedente a outros compradores.

Apesar das diferenças, os três veem com bons olhos a presença de Lula do lado de cá da fronteira. O petista assinou em 2009 um acordo com o único governo de oposição do país nos últimos 70 anos, do ex-bispo de esquerda Fernando Lugo (2008-2012), que triplicou o preço da energia para o Brasil e foi celebrado pelos paraguaios.

Para Oxilia, independentemente do vencedor, o que acontecerá em agosto após a posse, nos gabinetes diplomáticos, colocará em jogo também algo muito maior: o futuro das relações energéticas no Cone Sul. “Itaipu pode definir as bases para um mercado regional integrado”, diz.

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO