O impasse burocrático que desencadeou a suspensão da captação e do transplante de órgãos em Campo Grande representa desesperança e prejuízos para os pacientes de Mato Grosso do Sul e de todo o País, que esperam na fila por uma chance de sobreviver.

Desde segunda-feira (8), o laboratório de histocompatibilidade Bio Molecular, único habilitado em Mato Grosso do Sul para exames de rejeição e compatibilidade de transplante, suspendeu seus serviços em virtude do fim do contrato, o qual não foi renovado com a prefeitura da Capital.

Ao Correio do Estado, a profissional da Educação Anne Raissa Roberto Ferro, 29 anos, na fila por um transplante de rim desde abril deste ano, relatou que os pacientes estão se sentindo desassistidos e negligenciados.

“A notícia de que o laboratório daqui de Campo Grande encerrou os exames por conta do contrato que a prefeitura não renovou e não abriu nova licitação mostra total descaso que eles têm com a saúde no geral, e principalmente com nós, renais crônicos”, salientou Anne.

Anne explicou que no pré-transplante é feita a coleta do painel imunológico e o exame HLA (mapa genético), necessário para que o cadastro na fila do transplante se mantenha ativa.

“A cada dois meses, precisamos fazer esse exame para nos mantermos ativos na fila; sem ele, não podemos receber o rim. A suspensão dos exames atrapalha tanto quem tem a intenção de doar em vida quanto quem precisa receber o órgão”, afirmou.

Em hemodiálise desde outubro de 2020 por conta de uma doença renal rara, chamada síndrome nefrótica e glomerulonefrite, Anne afirmou que a paralisação dos exames para os transplantes representa uma quebra de expectativa sobre a cura.

“Essa salvação que buscamos, que é o transplante, não podemos ter neste momento e ficamos extremamente tristes e desolados. É algo que desrespeita a nossa vida e que não podemos perder tempo ou aguardar a boa vontade do Estado e ou município de realmente verem que essa questão deve ser tratada com urgência”, frisou Anne.

IMPASSE

A Secretaria de Estado de Saúde (SES) informou que, em atenção a acordo mediado pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul (MPMS), envolvendo o Executivo municipal, o laboratório Bio Molecular e a SES, aceitou dobrar seu repasse para a prefeitura da Capital.

“O montante que foi repassado ao Município de Campo Grande pelo governo do Estado, desde abril do corrente ano, já soma R$ 2.623.004,05, valor igual ao que o município recebeu do Ministério da Saúde no mesmo período”, afirmou, em nota, a reportagem.

Conforme a SES, esses valores são tudo o que o município usa na remuneração do contrato com o laboratório, sem precisar gerar despesas adicionais para isso.

“Ainda assim, a Prefeitura de Campo Grande decidiu não fazer novo contrato com o laboratório Bio Molecular”, salientou a SES.

Ao Correio do Estado, o Bio Molecular afirmou que a não renovação do contrato afeta quem precisa da doação e quem já foi atendido.

“Mandar para fora [o órgão] não dá. Não temos tempo para isso”, comentou a coordenação da equipe de transplante renal do laboratório, que aponta até ser possível essa locomoção, mesmo sendo uma manobra arriscada.

Como explicou a coordenação, quase 90 pacientes transplantados da Santa Casa fazem acompanhamento no laboratório, com exames constantes de rejeição e compatibilidade, e que diante do problema de manutenção do serviço precisariam realizar os procedimentos em outro estado.

É importante ressaltar que o trabalho do laboratório é imprescindível, principalmente no período pré-transplante para doadores e receptores de órgãos, tecidos e células-tronco hematopoéticas, e também para exames de monitoramento imunológico de receptores no período pré e pós-transplante.

É por meio da avaliação de compatibilidade entre doador e receptor, fundamental nesse processo, que a rejeição de rins transplantados e possíveis prejuízos aos pacientes receptores são evitados.

OUTRO LADO

Em contrapartida, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) de Campo Grande, em resposta ao Correio do Estado, destacou a Portaria nº 4 do Ministério da Saúde, de 28 de setembro de 2017, na seção II, art. 6º, que diz que “é de competência dos governos estaduais a coordenação regional do Sistema Nacional de Transplantes”.

A pasta também citou o artigo 7º, em que aponta as secretarias estaduais como responsáveis por estruturar as chamadas Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).

Sobre o fim do contrato, a Sesau limitou-se apenas a dizer que enviou ofício, em 28 de março, ao governo de MS dizendo que uma nova licitação se fazia necessária. “Desde então, o município aguarda o retorno do órgão, tendo reforçado o alerta por diversas vezes, sem receber qualquer retorno”, conclui a Sesau.

Já a SES termina sua nota apontando medidas a serem tomadas, para que os pacientes, principais afetados, não sejam prejudicados por muito tempo.

“Para não deixar a população sem os atendimentos, a SES abriu processo emergencial por meio da modalidade de inexigibilidade de licitação, com o objetivo de atender os pacientes que necessitam deste serviço”, finalizou.

SANTA CASA

Conforme apurado pelo Correio do Estado, a Santa Casa de Campo Grande é apenas credenciada e emite somente um parecer assistencial. O contrato envolve o governo do Estado, por meio da SES, e a Prefeitura de Campo Grande, pela Secretaria Municipal de Saúde.

Fora do âmbito das negociações entre as autoridades, a Santa Casa disse que teme os efeitos prejudiciais de não poder captar e transplantar órgãos e tecidos, além da suspensão do transplante renal no Estado.

“Dada esta circunstância, a Santa Casa enviou na data desta quarta-feira, dia 10 de agosto de 2022, um ofício à Sesau, SES, Conselho Regional de Medicina (CRM) e até ao Ministério Público Estadual (MPMS), formalizando essa preocupação, somada à necessidade de se manter um serviço tão importante aos pacientes dialíticos”, argumentou a entidade.

O hospital também reiterou que o ambulatório do serviço de diálise está em pleno funcionamento e nenhum paciente está desassistido.

“Sem a garantia dos exames de compatibilidade é impossível inserir pacientes no sistema para doação e na lista de espera pelo órgão e, consequentemente, o mesmo não terá o status ativo diante da oferta”, finalizou o hospital em nota.

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO