O retorno das aulas de modo inteiramente presencial nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Campo Grande (REME) trouxe para a sala de aula os reflexos que a pandemia de Covid-19 teve na saúde mental de alunos e professores.
De acordo com os dados do programa Valorização da Vida, da Secretaria Municipal de Educação (Semed), apenas nos três primeiros meses desde essa retomada, foram registrados 310 atendimentos de alunos de escolas das sete regiões urbanas da Capital.
De acordo com Cristiane Valdez, psicóloga e coordenadora do programa da Semed, os alunos voltaram para as aulas presenciais com um perfil diferente do que tinham quando foram estudar em casa.
“O aluno que voltou não sabe mais aceitar regras, está ansioso, não sabe aceitar frustrações, especialmente quando vem dos professores, não sabe lidar com os colegas”, destaca.
Ainda de acordo com ela, a predominância dos casos está em crianças entre 11 e 13 anos, que representam 90% dos atendimentos realizados.
“Os casos sempre foram observados em pessoas mais velhas, mas com a chegada da pandemia a faixa etária começou a descer porque as crianças começaram a ficar mais tempo em casa e com isso, muitas vezes, sofrer ou presenciar violência doméstica ou até mesmo sexual”, destaca Valdez.
Os dados do programa ainda mostram que apenas em março foram realizados 159 atendimentos, com 49 encaminhamentos para o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), para onde são levados os casos mais graves.
Além disso, é nessa faixa etária que também predominam os casos de desejo de tirar a própria vida acompanhados de automutilação, sendo registrados ao menos um caso no último mês.
Seguindo a tendência observada socialmente, a maioria dos atendimentos acontece por conta de crises de ansiedade e, após o atendimento especializado, em algumas situações, também são diagnosticados quadros depressivos
“São alunos que têm dificuldade em sala de aula, ficam agressivos, não querem entrar na escola e tem crises de choro sem motivo aparente. Já houve casos de alunos que não conseguiam entrar em sala de aula porque tinha crise”, conta a psicóloga.
O trabalho preventivo de saúde mental e inteligência emocional e previsto na Base Nacional Comum Curricular e escolas de todos do país devem ter programas de incentivo a convivência saudável entre a comunidade escolar e familiar.
“A escola tem que trabalhar as habilidades socioemocionais, ensinar o aluno a conviver, ser e estar, já que as famílias não estão dando conta ou, muitas vezes, por conta da estrutura familiar, não há interesse em fazer isso”, explica Valdez.
Desde 2018, quando o programa Valorizando a Vida foi lançado, já foram realizados cerca de 34 mil atendimentos entre servidores e alunos, sendo que 80% deles foram destinados para os últimos.
Ainda cabe esclarecer que durante as aulas remotas, o número de atendimento aos estudantes diminuiu consideravelmente, sendo registrados apenas 91 atendimentos, uma vez que a escola só poderia interferir nos casos se fosse informada pelo aluno ou por algum professor.
Em comparação, em 2018 foram registrados 1.380 atendimentos voltados para alunos e 1.113 para servidores das escolas. Já em 2019, esse número aumentou consideravelmente e foram registrados 7.679 atendimentos para o primeiro grupo e 1.670 para o segundo.
Em 2021, com o retorno escalonado das aulas, o programa interviu em 310 casos de estudantes e 1.562 de servidores, sobretudo de professores.
De acordo com psicóloga, os sintomas apresentados pelas crianças podem revelar algo que está acontecendo dentro de casa, com a família, podendo ser problemas na relação dos pais, violência doméstica, ou até mesmo abusos sexuais.
“As crianças nas primeiras séries do fundamental procuram mais os professores de Artes e educação Física para relatarem esses problemas. Eles podem fazer um desenho ou uma brincadeira como meio de contar o que está acontecendo com elas em casa. Já os maiores entre 11 a 14 anos conversam mais com os professores de Língua Portuguesa”.
O levantamento mostrado por Cristiane apontam que do dia 3 a 31 de março, primeiro mês de aulas, 15 alunos relataram casos de violência sexual e foram encaminhados ao Conselho Tutelar, que esta acompanhando os casos.
Por serem menores de idade, a Lei Federal n 13.819 e a lei estadual 5.598 de 2020 obriga a equipe escolar a manter os pais do aluno informado sobre o que ele relatou na escola.
Por sua vez, eles reagem de todas as formas possíveis, até porque, em muitos casos eles alegam desconhecer o sofrimento pelo qual a criança está passando. Contudo, Cristiane alega que a informação é recebida com tranquilidade pelos responsáveis.
“A grande maioria recebe bem, mas há famílias que não querem que a escola saiba o que está acontecendo dentro de casa. Por exemplo, teve uma família que preferiu transferir o aluno para a rede estadual porque se o aluno começasse o tratamento iria abrir os problemas que acontecem.”.
Já entre os professores os casos de transtornos mentais causados pelo isolamento social também foram significativos. Em 2020, ano que começou a pandemia, o número de atendimento para servidores foi de 494, enquanto o de alunos foi de 91.
Isso acontece porque, segundo a coordenadora, os professores ficaram em contato direto com a equipe escolar, com quem puderam dividir a carga emocional que as mudanças trouxeram, como as aulas remotas em que nem sempre os alunos eram participativos ou mesmo deixavam as câmeras ligadas, desmotivando o profissional da educação.
Fatores como a crescente crise econômica, que afetou o orçamento familiar ou até mesmo a convivência mais constante com os membros da família foram relatados como motivo de adoecimento mental dos servidores escolares.
FONTE: CORREIO DO ESTADO